O artista alemão Kurt Schwitters
entrou para a história da arte com o injusto epíteto de ovelha desgarrada do
dadaísmo. Os próprios dadaístas viam Schwitters como um pequeno burguês
tentando chocar outros burgueses escandalizáveis. Dadaístas eram os
berlinenses. Schwitters era apenas um artista de Hannover posando de
revolucionário. Nada mais injusto. Uma exposição retrospectiva com 120 obras
suas, que a Pinacoteca do Estado inaugura nesta terça, 16, dá uma dimensão mais
justa do que representou a atuação do artista na Europa dos anos 20 quando,
dividido entre o rigor dos construtivistas russos e a provocação dadaísta,
Schwitters escolheu ficar com os dois.
Agora, os brasileiros vão poder
atestar que o talento visionário do alemão foi além da negatividade dadaísta,
antecipando em décadas alguns dos procedimentos hoje incorporados por artistas
contemporâneos, entre eles a colagem, a instalação e o uso de materiais
rudimentares na criação de obras artísticas.
Não fosse por esse motivo, a
exposição já seria importante por outro. Há 46 anos São Paulo não via uma obra
de Schwitters. A última vez que os paulistanos passaram os olhos numa de suas
históricas collages foi na VI Bienal Internacional de São Paulo (1961). Raras
nos museus brasileiros, apenas uma obra sua pode ser vista no Museu de Arte
Contemporânea (MAC) de São Paulo. Pensando nisso, o Ministério das Relações
Exteriores da Alemanha e o Instituto Goethe de São Paulo resolveram em parceria
reunir as 120 obras das coleções do Museu Sprengel de Hannover e da Fundação
Kurt e Ernst Schwitters, os dois organizadores da mostra que marca o início do
Kulturfest, festival dedicado às artes (cinema, música, dança, artes visuais)
promovido pelos institutos Goethe do Brasil até 2 de dezembro.
Panorama da carreira
A seleção traz exemplares de todos os períodos do artista, entre desenhos, collages, assemblages, esculturas e até uma réplica do Merzbau, obra-chave concebida antes que a Alemanha mergulhasse em seu pesadelo, testemunhando a ascensão de Hitler ao poder, e destruída num bombardeio aéreo, em 1943. A palavra Merz é uma espécie de pedra de toque na obra schwittersiana, extraída de um fragmento de jornal com a palavra Kommerz. Ironia. Provavelmente vinha de Kommerzbank, banco comercial, indicando sua resposta aos dadaístas, que o consideravam burguês, embora Hans Arp tenha sido o primeiro a persuadir Schwitters a abandonar a academia. Merzbau foi o centro da criação desse mito pessoal. Nasceu no próprio estúdio do artista.
Nessa protoinstalação, que começou
em 1923 e passava por todas as paredes do mesmo, collages e assemblages unidas
por fios de arame e cordas desciam as escadas e tomavam toda a casa. Schwitters
juntou a ela um bizarro conjunto de objetos achados, presenteados por amigos ou
desprezados por artistas, antecipando em muitas décadas o site specific e as
instalações de Tony Cragg (não se deve esquecer que o escultor inglês vive em
Wuppertal e conhece bem a arte alemã). Antes de Cragg, outros beberam na fonte
de Schwitters. O pintor pop Rauschenberg foi um deles. Nos anos 1960, ele
grudou objetos à tela numa típica solução neodadaísta, guardando muito da
ironia das collages de Schwitters e, por consequência, absorvendo delas seu
caráter paradoxal.
Schwitters era epilético e introvertido. Seu trabalho cria um jogo enigmático, ao provocar associações perturbadoras. Carrega uma tensão interior, oscilando entre o abstrato e o real e anunciando a sociedade do desperdício que surgiria no pós-guerra. Obra de um visionário, o verdadeiro realista.
Réplica de Merzbau
O sagrado, para Kurt Schwitters, estava ligado intimamente à noção de realidade. Ou estava aqui ou não estava em lugar nenhum. Tudo o que era sagrado para ele, dizia, estava em sua instalação Merzbau, cuja réplica pode ser vista, a partir de hoje, na Pinacoteca do Estado. Como se disse anteriormente, ela foi destruída durante um bombardeio na 2ª Guerra, cinco anos antes da morte do artista alemão. Schwitters já se encontrava na Inglaterra, onde morreria cinco anos depois, em 1948, sem nunca mais ver a obra que ele mesmo classificou de "autobiografia construída". À maneira do homem de teatro Antonin Artaud, para Schwiters não havia separação entre arte e vida. Sua Merzbau era uma espécie de catedral gótica construída para uso pessoal.
Essa não é uma interpretação crítica. É um testemunho pessoal do artista, inscrito num texto intitulado Ich und meine Ziele (Eu e Minhas Metas), de 1931. Nele, Schwitters explica o processo embrionário do Merzbau, cujo centro é uma simbólica coluna que cresce como uma árvore invadindo todos os oito cômodos do estúdio do artista, no número 5 da Waldhausenstrasse, em Hannover, crescendo indefinidamente em direção ao céu como a coluna infinita de Brancusi. Quando o artista partiu para a Noruega, em 1937, não conseguindo visto para os Estados Unidos, essa coluna - que ele chamou de Säule des erotischen Elends (Coluna da Miséria Erótica) - já havia invadido o teto e o balcão no andar térreo.
Por que uma fálica coluna com um comentário erótico era associada no texto a uma catedral secular de inspiração gótica é assunto para psicanalistas, mas é provável que Schwitters não encarasse sua instalação como uma manifestação de caráter puramente formal. Tanto que, entre os nichos que abrigavam os objetos doados por amigos, havia espaço para artistas visuais como Hans Arp, escritores como Goethe e arquitetos como Mies van der Rohe, além de uma curiosa caverna dedicada à memória de assassinos (os nazistas?). Reminiscências pessoais misturam-se, enfim, às históricas nessa protoinstalação que inspiraria, décadas mais tarde, os ambientes penetráveis criados pelo brasileiro Hélio Oiticica na época do tropicalismo, isto é, nos anos 1960.
Autor:
Kurt Schwitters
Obra:
Zeichnung A3
Ano:
1918
Localização: Fondazione Kurt and Ernest Schiwitters, Hannover
Dimensões:
13,3 x 10,8 cm
Técnica:
colagem
Movimento:
Dadaísmo
Autor: Kurt Schwitters
Obra: Bild mit heller Mitte (Picture with Light Center)
Ano: 1919
Localização: The Museum of Modern Art, New York
Dimensões: 33 1/4 x 25 7/8 in. (84.5 x 65.7 cm)
Técnica: Painted collage
Movimento:
Dadaísmo
Autor: Kurt Schwitters
Obra: Revolving
Ano: 1919
Localização: The Museum of Modern Art. New York City
Dimensões: 122.7 x 88.7 cm
Técnica: Relief construction of wood, metal, cord, cardboard, wood, wire, leather,
and Oil on canvas
Movimento: Dadaísmo
Autor: Kurt Schwitters
Obra: Merzbild Rossfett
Ano: 1919
Localização: Coleção privada
Dimensões: 8 x 6 7/8 in. (20.4 x 17.4 cm)
Técnica: assemblage
Movimento: Dadaísmo
Autor: Kurt Schwitters
Obra:
Konstruktion fur edle Frauen
(Construction for Noble Ladies)
Ano:
1919
Localização:
Los Angeles County Museum of Art
Dimensões:
40 1/2 x 33 in. (103 x 83.3 cm)
Técnica:
assemblage
Movimento:
Dadaísmo
Autor: Kurt Schwitters
Obra:
Merz Picture 25A: The Star Picture
Ano:
1920
Localização:
Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen,
Dusseldorf
Dimensões:
104.5 x 79 cm
Técnica: Montage, collage and oil on cardboard
Movimento:
Dadaísmo
Autor: Kurt Schwitters
Obra:
Merzbild 29A. Picture with Flywheel
Ano:
1920
Localização: Sprengel Museum, Hannover, Germany
Dimensões: 85,8 x 106,8 cm, 93 x 113,5 x 17 cm (wooden frame)
Técnica: Assemblage, oil, diverse material on cardboard, wood and paper
Movimento:
Dadaísmo
Autor: Kurt Schwitters
Obra: Picture of Spatial Growths - Picture with Two Small Dogs
Ano: 1920-39
Localização: Tate Gallery, London
Dimensões: 1155 x 863 x 131 mm
Técnica: Mixed media collage on board
Movimento:
Dadaísmo
Autor: Kurt Schwitters
Obra: Cherry Picture
Ano: 1921
Localização: The Museum of Modern Art, New York
Dimensões: 36 1/8 x 27 3/4 in.
Técnica: Collage of colored papers, fabrics, printed labels and pictures, pieces
of wood, etc., and gouache on cardboard background
Movimento:
Dadaísmo
Autor: Kurt Schwitters
Obra: Kleine DADA Soirée
Ano: 1923
Localização: Art Gallery of New South Wales, Sydney, Australia
Dimensões: 29.8 x 29.8cm image/sheet
Técnica: Print colour lithograph
Movimento:
Dadaísmo
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